edição 14.2

Portuguese Language Special Issue

Apresentação - Edição especial da DHQ em português

  • Luis Ferla
  • Cecily Raynor

  • globalDH
  • infrastructure
  • standards
  • cultural criticism
  • graphic design
  • geospatial
  • data curation
  • ethics
  • area studies

    Apresentação - Edição especial da DHQ em português

    Após as edições em espanhol e em francês, vem agora à luz a edição especial em português da Digital Humanities Quarterly. A iniciativa compõe um esforço diligente da Alliance of Digital Humanities Organisations (ADHO), entidade que publica a DHQ, para conferir maior diversidade e polifonia aos debates que envolvem as humanidades digitais, reconhecidamente centrados no mundo anglo-saxão (sobre isso, ver Gil, 2016, e O’Donnell et. al., 2016). No âmbito da mesma organização, as ações desenvolvidas pelo Global Outlook::Digital Humanities (GO::DH) têm como objetivo ostensivo “(…) ajudar a quebrar as barreiras que impedem a comunicação e a colaboração entre pesquisadores e estudantes das áreas de Artes Digitais, Humanidades e Patrimônio Cultural, em economias de alta, média e baixa renda.” Daí que se considere que “as perspectivas do Sul Global são vitais para moldar o futuro das humanidades digitais.” 1 A premissa é a de que as humanidades digitais só podem realizar plenamente a identidade que gostam de assumir, qual seja, a da valorização do compartilhamento do conhecimento e da liberdade para produzi-lo e fazê-lo circular, se efetivamente questionarem as atuais geopolíticas do mundo acadêmico e científico que disciplinam as práticas das comunidades envolvidas.

    No entanto, tudo o que envolve a quebra de hierarquias culturais é mais complexo do que faz supor o reconhecimento de boas vontades e belas ideias. As infraestruturas tecnológicas, por exemplo, não são fácil e prontamente transformadas para se conformarem melhor a concepções e mentalidades mais igualitárias e democráticas. As tensões resultantes dessas incompatibilidades podem ser produtivas, se colaboram para a transformação daquelas infraestruturas em direções emancipatórias, ou negativas, se constrangem a viabilização das novidades. O recente adiamento pela NASA da primeira caminhada espacial composta apenas de mulheres da história, por conta da falta de trajes femininos de astronautas, é um exemplo anedótico e quase metafórico desse fenômeno.2 A explicação do ocorrido denuncia a defasagem entre a intenção igualitária e a infraestrutura tecnológica: “O design de trajes espaciais tem sido tendencioso em direção ao físico dos homens, devido a restrições tecnológicas e ao fato de a NASA ter preferido astronautas masculinos durante a maior parte de sua existência” .3 Na preparação da presente edição especial, também surgiram contratempos que ilustram a mesma questão de fundo. Em dezembro de 2018, o Open Journal Systems, iniciativa em si mesma meritória, pois viabiliza a edição e a circulação de revistas de acesso aberto, atualizou a sua plataforma para uma versão pretensamente mais moderna e funcional. No entanto, a partir da migração, a plataforma passou a não mais reconhecer os caracteres especiais da língua portuguesa, tais como aqueles que aparecem em globalização e contradições. Assim, os artigos, os pareceres e as correspondências entre os envolvidos tornaram-se quase ilegíveis. Muitos foram os afetados por esse problema, e um tópico sobre o tema foi aberto no fórum de discussões da OJS/PKP (https://forum.pkp.sfu.ca/search?q=special%20characters, acessado em 8 de dezembro de 2019). De todo modo, o problema de codificação dos textos não teve solução até o momento, persistindo a dificuldade na leitura de idiomas que fazem uso de caracteres especiais, como o português. No ambiente das humanidades digitais, o tema não é novo já vem sendo abordado há algum tempo. Como afirmam Fiormonte et al (2015), “(…) decisões aparentemente neutras e técnicas , como podem ser observadas em Unicode, TEI ou outras organizações, tendem a simplificar demais e a padronizar a complexa diversidade de idiomas e artefatos culturais” .4

    Por conta disso, e após muitas tentativas frustradas, decidiu-se prosseguir com o fluxo do trabalho da edição em um sistema paralelo, com base na troca de e-mails e no armazenamento dos arquivos em repositórios digitais, prescindindo da plataforma do OJS. Ao fim e ao cabo, a edição em português chega ao seu destino programado, ainda que com atraso, mas com todos os acentos e cedilhas a que tem direito.

    O conjunto de textos da edição pode ser separado em dois grupos: três artigos têm o seu centro de gravidade na discussão de projetos de pesquisa que se identificam com as humanidades digitais, a partir dos quais desenvolvem algumas reflexões mais gerais; e três outros analisam o que cerca e condiciona a pesquisa e o trabalho do humanista digital, abordando tanto questões teórico-metodológicas, como dominâncias temáticas e tendências institucionais. No primeiro grupo, chama a atenção que as três pesquisas apresentadas têm nas geotecnologias o seu principal suporte instrumental, nesse aspecto confirmando a percepção geral da valorização crescente da dimensão espacial em pesquisas nas humanidades 5. Dois desses projetos se ocupam da história: Patricia Ferreira Lopes faz uso de sistemas de informações geográficas (SIG) para estudar as redes de caminhos da Península Ibérica do século XVI, e Maria João Ferreira dos Santos reconstrói, por meio da mesma tecnologia, a história da conservação da natureza na Califórnia, cobrindo o período que vai de 1850 a 2010. Mesmo que oriundas das áreas da arquitetura e da biologia, respectivamente, Patrícia Lopes e Maria dos Santos acabam por corroborar a tese de que os SIGs têm a predileção entre os pesquisadores do passado que fazem uso de tecnologias 6. Sarita Albagli, Hesley Py e Allan Yu Iwama compuseram o terceiro artigo dedicado a projeto com geotecnologias, nesse caso abordando uma experiência de intervenção social sobre o território. O projeto em tela discute o desenvolvimento de um “protótipo de plataforma de dados abertos geoespaciais [Plataforma LindaGeo], como parte de uma pesquisa-ação de ciência aberta realizada no município de Ubatuba, no litoral norte do Estado de São Paulo, Brasil” . Aqui também são reafirmadas algumas das principais identidades que costumam ser associadas às humanidades digitais, voltadas à ética da produção colaborativa e à livre circulação do conhecimento 7 8.

    Já dentro do segundo bloco de artigos, Luís Corujo, Jorge Revez e Carlos Guardado da Silva se ocupam de um tema que tem sua importância ainda pouco reconhecida: a curadoria digital e seus custos. Os autores defendem não apenas uma maior diligência no planejamento da gestão de dados, mas também a disseminação de práticas mais transparentes e reprodutíveis, de forma a aumentar o acesso aos resultados da produção científica. Por sua vez, Cláudio José Silva Ribeiro, Suemi Higuchi e Luis Ferla buscam compor um panorama aproximado das humanidades digitais no Brasil, privilegiando, para isso, a experiência do I Congresso Internacional em Humanidades Digitais no Rio de Janeiro, em abril de 2018. Encerrando o dossiê, Maria Clara Paixão de Sousa traz uma reflexão acerca da ressignificação radical da escrita e da leitura no ambiente tecnologizado do tempo atual, o que, em sua perspectiva, altera “profundamente o trabalho tradicional nas humanidades” e instaura “uma nova conformação discursiva para o campo” .

    Por fim, os editores gostariam de agradecer a todos que tornaram possível esse número especial da DHQ, a começar pelos próprios autores e autoras e pareceristas convidados, dos quais a capacidade intelectual, o conhecimento científico e a obstinada paciência foram imprescindíveis para haver algo aqui a ser introduzido. A Alex Gil, pelo convite inicial e pelo suporte desde então. E a Rhian Lewis e Kate Bundy, assistentes consecutivas de todo o processo, produtoras incansáveis de facilidades e destruidoras implacáveis de dificuldades, elas sim as verdadeiras caracteres especiais dessa edição.


    1. Tradução livre do original: “(…) aims to help break down barriers that hinder communication and collaboration among researchers and students of the Digital Arts, Humanities, and Cultural Heritage sectors in high, mid, and low-income economies” e “The perspectives of the Global South are vital for shaping the future of digital humanities” (em: http://www.globaloutlookdh.org, acessado em 6 de dezembro de 2019). ↩︎

    2. A caminhada, inicialmente prevista para março, acabou realizada em outubro de 2019 (https://www.nytimes.com/2019/10/05/science/NASA-female-spacewalk.html, acessado em 6 de dezembro de 2019). ↩︎

    3. Tradução livre do original: “Spacesuit design has long been biased toward men’s physiques, both due to technological constraints and the fact that NASA preferred male astronauts throughout most of its lifetime” . (em: https://www.theverge.com/2019/10/21/20920790/nasa-first-all-female-spacewalk-christina-koch-jessica-meir-spacesuit-design-bias, acessado em 12 de dezembro de 2019). ↩︎

    4. Tradução livre do original: “(…) apparently ‘neutral’, ‘technical’ decisions, as can be observed in Unicode, TEI or other organisations, tend to oversimplify and standardise the complex diversity of languages and cultural artefacts” (em: https://www.academia.edu/20563469/The_Politics_of_code._How_digital_representations_and_languages_shape_culture, acessado em 6 de dezembro de 2019). ↩︎

    5. BODENHAMER, David J; CORRIGAN, John; HARRIS, Trevor M. (Ed.). The spatial humanities: GIS and the future of humanities scholarship. Bloomington: Indiana University Press, 2010. ↩︎

    6. GREGORY, Ian; ELL, Paul. Historical GIS: Technologies, methodologies and scholarship . Cambridge: Cambridge University Press, 2007. ↩︎

    7. GREENSPAN, Brian. “Are Digital Humanists Utopian?” In: GOLD, M.; KLEIN, L. (eds). _Debates in the Digital Humanities. _ Minneapolis: University of Minnesota Press. p. 393-409. 2016. ↩︎

    8. SPIRO, Lisa. “‘This is why we fight’: defining the values of the digital humanities” . In: Gold, Matthew K. (editor). _Debates in the Digital Humanities. _ Minneapolis: University of Minnesota Press. p. 16-35. 2012. ↩︎